Contra a corrente, guardiões da
floresta lutam para manter a Amazônia em pé
FINAL
Terra
Indígena Kawahiva do Rio Pard o
“A reação deles foi flechar, a minha foi correr”,
conta o sertanista Jair Candor sobre encontro casual com indígenas Kawahiva do
Rio Pardo, 100% isolados
Marcelo Camargo/ Agência Brasil
A base da Fundação Nacional do
Índio (Funai) na Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo fica a 114 quilômetros de
Colniza e é liderada pelo sertanista Jair Candor, um dos mais experientes
funcionários da fundação. Candor defende com paixão a demarcação da área, sob o
argumento de que o fato de serem isolados deixa esses indígenas mais
vulneráveis a violações, por desconhecerem seus direitos. “Eles não sabem os
limites deles. Como que um índio isolado pode saber o limite dele. Ele nem sabe
que existe isso. A mata é dele, sempre viveu ali. Se a terra dele é contígua
com a reserva de uma fazenda, por exemplo, ele não diferencia o que é de quem”,
explicou.
Jair Candor avalia que a história
de contato dos “brancos” com os indígenas no Brasil é “um verdadeiro desastre”.
Ele disse que o período de maior mortandade de índios foi na época dos contatos
feitos de forma despreparada. “A Funai até hoje não tem equipes realmente
preparadas para isso. Esses povos que vivem isolados são muito sensíveis ao
contato. Qualquer gripe, qualquer coisa, pode matar. Se não tiver preparo de
equipes de saúde, principalmente podemos levar esses grupos a extinção”,
alertou.
“Desde 1999 aguardamos essa
demarcação”, conta o sertanista. Jair Candor participou da expedição que, em
junho de 99, encontrou vestígios de Kawahivas tradicionais, povo nômade que
vive de caça e coleta, após um pesquisador de madeira avisar a Funai que tinha
avistado indígenas na mata fechada. “Quando fomos verificar, encontramos 'tapiris', casinhas
provisórias típica dos Kawahiva e outros objetos. Acreditamos que esses
indígenas deixaram de praticar agricultura pela necessidade de fugas constantes
devido aos ataques no território deles”.
Instalações provisórios da sede da Funai na TI
Kawahiva do Rio Pardo
Marcelo Camargo/ Agência Brasil
Marcelo Camargo/ Agência Brasil
Após a existência do grupo
indígena ser comprovada, 166 mil hectares foram interditados por três anos para
garantir a proteção dos índios. Pela Constituição Federal de 1988, os indígenas
“detêm o direito originário e o usufruto exclusivo sobre as terras que
tradicionalmente ocupam. Após estudos antropológicos, históricos, fundiários,
cartográficos e ambientais, 411 mil hectares tiveram interdição definitiva em
2007.
Em 2011, Jair Candor liderou uma
nova expedição na região e teve um encontro casual com os indígenas na mata
fechada. Passado o susto, Jair lembra com humor a reação de cada grupo ao
encontro. “A reação deles foi flechar. A nossa foi correr”, conta. “O único
contato que tive foi visual. Registramos imagens de 9 pessoas. Estimamos que
sejam cerca de 20 indígenas no total, 100% isolados. Eles nunca buscaram a
nossa ajuda”, contou.
Após anos de espera, no dia 20 de
abril, o Ministério da Justiça publicou a Portaria Declaratória da Terra
Indígena Kawahiva do Rio Pardo, o primeiro passo para a demarcação definitiva
da área, que estava interditada, mecanismo previsto para proteger povos
isolados. "Fiquei muito feliz com a portaria. Foi um grande passo, mas
temos que continuar lutando pela demarcação, porque a portaria ainda pode cair",
disse.
Placa mostra o limite da TI Kawahiva do Rio Pardo
Marcelo Camargo/ Agência Brasil
Marcelo Camargo/ Agência Brasil
Desde a interdição da área, em
2007, a Funai aguardava a Portaria Declaratória do Ministério da Justiça, ato
que reconhece a posse tradicional indígena. É essa declaração que autoriza que
as áreas sejam demarcadas fisicamente, com a materialização dos marcos e
georreferenciamento. A partir daí, a homologação é feita por meio de decreto
presidencial.
Jair chegou na região em 1999 e
viu mudanças rápidas que ameaçam o bem-estar dos índios isolados, entre elas, o
crescimento acelerado das cidades. Jair viu a população de Colniza e de Guariba
explodir. “A maior parte da população mais antiga veio dos estados da Região
Sul do país e os mais recentes de Rondônia. Aqui tem muito madeireiro. Cheguei
em 1999 e, desde então, chegou muita gente, muito rápido. Aqui teve muita morte
por causa de terra e fazenda”, contou, lembrando que o município já liderou a
lista dos mais violentos do estado.
A área da terra indígena tem
problemas fundiários antigos. Partes eram ocupadas por fazendas e outra parte é
terra devoluta. “Tudo aqui tem dono, mas se procurar documentação, não tem”,
destacou Jair Candor. Ele lembrou que desde a interdição das fazendas que
estavam na terra indígena, em 2007, muitas liminares de fazendeiros foram
apresentadas contra a decisão. “Três fazendeiros da época da interdição
conseguiram ficar na área e manter o que tinham, bois, por meio de liminar.”
Segundo ele, há rumores de que fazendeiros com área interditada estimulam a
grilagem para dificultar uma possível demarcação. “Passam por cima de tudo, é
má fé”, julga o sertanista.
Jair Candor contou que quando a
área foi ampliada, em 2007, a Operação Rio Pardo da Polícia Federal prendeu
muita gente envolvida com grilagem e extração de madeira ilegal, inclusive
políticos e poderosos conhecidos na região. “Nessa época aliviou e ficamos
muito tempo sem invasão. Mas tem uns três anos que começou de novo. O Ibama dá
uma força, mas é difícil conseguir pegar os verdadeiros culpados”, avaliou.
“Mas aqui, quando ficam sabendo que o Ibama vem, os grileiros queimam as pontes
para dificultar a chegada e dar tempo pra fugir”, completou.
Dedicação ao trabalho
Marcelo Camargo/ Agência Brasil
Jair Candor já recebeu
incontáveis ameaças indiretas por estar há 17 anos defendendo a demarcação de
terra e a proteção dos indígenas. “Já fui acusado de plantar índios e já ouvi
comentários como 'fulano falou que você não passa de hoje. Toma cuidado' de
moradores. O pessoal amigo me alerta sempre”, contou.
As instalações da Funai na TI
Kawahiva do Rio Pardo ainda são provisórias e foram construídas pela equipe de
campo. A sede definitiva, de alvenaria, não pode ser construída até que a terra
seja regularizada. O acampamento provisório serve de lar para Jair Candor e
outros funcionários por longos períodos. Jair chega a passar até 40 dias na
reserva, longe da mulher e dos filhos, que vivem em Alta Floresta. “Acredito no
trabalho que faço e faço o que gosto”, afirma.
Imerso na selva, Jair Candor já
teve malária 42 vezes. “Pra mim já virou uma gripe, nem procuro mais médico”,
brinca. A malária foi a causa do abandono de terras em muitos assentamentos da
região.
Na base, há sempre de 4 a 6
funcionários que se revezam para fiscalizar a área, na tentativa de evitar
invasões, e cuidam da estrutura do acampamento provisório, uma casa típica da
região com um cômodo que acomoda até dez pessoas em redes e camas, mesa de
jantar e cozinha. Eles produzem a maior parte dos vegetais e das frutas que
consomem. O pequeno pomar rende visitas noturnas, diárias, de uma anta em busca
das frutas. “Adora mamão”, comenta Jair.
No acampamento, há painéis
solares e um gerador que garantem energia e acesso à internet. A área aberta
pelo acampamento é pequena, cercada por floresta nativa. Há uma televisão onde
a equipe assiste jornais e novelas antes de dormir. Acordam com o sol.
Reportagem:
Maiana Diniz*
Imagem:
Marcelo Camargo*
Infografia:
Lia Magalhães Graça Silva
Edição:
Lilian Beraldo
*Os
repórters viajaram a convite da organização ANDI - Comunicação e Direitos, pelo
projeto Mídia e Amazônia