A
maternidade fora do cárcere
Presas retomam a vida junto dos filhos após decisão
do STF
Publicado
em 12/05/2018 - 09:00
Por Sabrina
Craide – Repórter da Agência Brasil Brasília
Quando foi presa pelos
policiais, em setembro do ano passado, Taiane Gonçalves ainda estava
amamentando o filho Enzo, de 1 ano e 8 meses. Durante cinco
meses, ela só teve notícias do bebê, seu primeiro filho, por meio de
parentes, pois não queria que ele frequentasse o Centro de Detenção Provisória
Feminino de Franco da Rocha (SP), onde ela estava
detida. De longe, ficou sabendo que Enzo, mesmo tão pequeno, sentiu o
afastamento e demorou para se acostumar com a falta da mãe.
“Ele ficou com febre, perguntando
por mim, estranhando as pessoas. Ficar longe dele foi a pior situação possível
que eu passei, porque somos muito apegados, sempre estivemos juntos”, diz a
mãe, de 23 anos, acusada de tráfico de drogas, associação ao tráfico
e porte de arma.
Em fevereiro deste ano, Taiane
foi a primeira mulher do país beneficiada pela decisão do Supremo Tribunal Federal
(STF) que aprovou um habeas corpus coletivo para
substituir a prisão preventiva por domiciliar para presas de todo o país
que sejam gestantes ou mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência.
Um dia depois da votação no STF,
o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Joel Ilan Paciornik
determinou a substituição da prisão preventiva
de Taiane pela domiciliar. Na decisão, ele afirmou que, apesar de estar sob os
cuidados de parentes, o contato permanente da criança com a mãe “mostra-se
essencial ao seu desenvolvimento, além de ser um direito previsto em inúmeros
dispositivos legais”.
Presas com seus filhos na Penitenciária Feminina do
Distrito Federal (Colmeia) - Luiz Silveira/Agência CNJ/ Direitos Reservados
No dia do
esperado reencontro com o filho, Taiane sentiu uma mistura de alegria e
decepção, porque a criança não a reconhecia mais, depois de ficar tanto tempo
sob os cuidados da avó paterna. “Ele não me reconheceu, não queria vir para
mim, não sabia quem era a mãe dele, tinha esquecido já. Só depois de umas duas
semanas ele voltou a ficar comigo de novo, me chamar de mãe”, conta.
Antes do habeas corpus, Taiane estava presa
de forma provisória. Atualmente, teve a prisão domiciliar revogada e
aguarda o fim do julgamento em liberdade. Seu companheiro assumiu a posse pelas
drogas que estavam escondidas na casa dela.
Segundo o Departamento
Penitenciário Nacional (Depen), 10.321 presas em todo o país atendem os
requisitos da decisão do STF e poderiam ser beneficiadas com a medida, assim
como Taiane. O STF deu 60 dias para que os tribunais de Justiça dos
estados cumprissem integralmente a decisão e liberassem as presas
grávidas ou com filhos pequenos para aguardar o julgamento em casa. O
prazo terminou no início de maio, mas em muitos estados, presas que
atendem aos requisitos determinados pela Corte ainda estão encarceradas. A
concessão da prisão domiciliar ainda ocorre de forma lenta, segundo
entidades e órgãos ouvidos pela Agência Brasil que acompanham o assunto.
Para o Dia das Mães, Taiane não
tem planos especiais, só ficar perto do filho e da família. “Agora é só
felicidade. Quem diria que eu estaria aqui fora perto dele. É o que eu quero
agora, viver minha vida da melhor forma”, diz.
Maternidade digna
Em 2016, o Brasil aprovou o Marco
Legal da Primeira Infância, que entre outras proteções a crianças de até 6
anos, modificou o artigo 318 do Código de Processo Penal para incluir novas
hipóteses de prisão domiciliar. Além dos casos de pessoas acima de 80 anos, com
doenças crônicas, mães com filhos menores de 6 anos, com deficiência ou
dependentes de cuidados especiais, situações já previstas na lei, o dispositivo
passou a assegurar prisão domiciliar também a mulheres gestantes, mães com ao
menos um filho até 12 anos, e também a homens com ao menos um filho da mesma
idade, quando caracterizado serem eles o único responsável pela criança.
“Toda mulher tem direito de
exercer a maternidade de maneira digna. Essas mulheres são capazes de amar seus
filhos e nós temos que propiciar que isso aconteça de uma maneira digna,
respeitando seus direitos e os direitos das crianças”, defende o advogado Pedro
Hartung, coordenador do programa Prioridade Absoluta, do Instituto Alana,
organização da sociedade civil que atuou como amicus curiae no
julgamento da ação no STF.
"Essas mulheres são capazes
de amar seus filhos e nós temos que propiciar que isso aconteça de uma maneira
digna, respeitando seus direitos e os direitos das crianças”, Pedro
Hartung, advogado e coordenador do programa Prioridade Absoluta, do Instituto
Alana
O advogado explica que a
decisão do Supremo favorece principalmente as crianças, para que elas
possam ter um desenvolvimento adequado e sadio ao lado das mães.
“Nenhuma criança merece passar um dia sequer dentro de um presídio. A gente
sabe que as condições nos presídios femininos são insalubres, com altos índices
de doenças transmissíveis como tuberculose, aids, nenhuma criança
merece ter esse tratamento assim que chega ao mundo”, diz. Segundo o
Instituto Alana, na ocasião da votação do habeas corpus, cerca de 2 mil
crianças estavam com as mães em presídios no país, e somente 121 tinham acesso
a espaços adequados.
A forma como os filhos de mães
presas vêm ao mundo e o que acontece com eles depois varia de acordo com as
regras de cada estado. Não são raros os partos que acontecem em celas, corredores
ou nos pátios das prisões. Quando as mães têm atendimento médico, muitas vezes
o parto é feito com o uso de algemas ou com a presença de agentes
penitenciários. Em seguida, alguns bebês são retirados do convívio da mãe logo
após o nascimento, e encaminhados para a família ou para abrigos. Em outros
casos, ficam com a mãe até completarem seis meses, vivendo dentro do presídio.
Para o relator da matéria no STF,
ministro Ricardo Lewandowski, a separação entre as mães e filhos, seja nos
presídios, seja em entidades de acolhimento institucional, pode causar dano
irreversível e permanente às crianças filhas de mães presas. “Nos cárceres,
habitualmente estão limitadas em suas experiências de vida, confinadas que
estão à situação prisional. Nos abrigos, sofrerão com a inconsistência do afeto
que, numa entidade de acolhimento, normalmente, restringe-se ao atendimento das
necessidades físicas imediatas das crianças”, disse o ministro, em seu voto.
Em parecer enviado ao STF, o
Ministério Público Federal se manifestou contra o direito automático à prisão
domiciliar para mulheres gestantes ou com filhos de até 12 anos. A
subprocuradora-geral da República Cláudia Sampaio Marques, que assina o
parecer, disse que a análise não pode ser feita de forma coletiva, e defendeu
que não se pode permitir que a maternidade vire uma “garantia irrestrita e uma
proibição à prisão cautelar”.
Demora para o cumprimento da medida
A falta de documentos das mães e
das crianças e a não priorização por parte dos juízes para determinar
a prisão domiciliar são as principais causas apontadas pelo defensor
público-geral da União, Carlos Eduardo Paz, para a demora no cumprimento da
decisão do STF. Ele já pediu informações para todas as defensorias estaduais
para entender quais são os principais obstáculos para a liberação das
presas que deveriam ser beneficiadas pelo habeas corpus coletivo.
“Temos notícias de casos em que a
questão é tratada como qualquer outra, ou seja, não parece que tem uma ordem do
Supremo, não parece que tem um prazo a ser cumprido”, diz o defensor. A
Defensoria Pública da União (DPU) também quer saber se
existem dificuldades estruturais para o cumprimento da medida, como falta
de tornozeleira eletrônica ou de equipe multidisciplinar para monitorar a
prisão domiciliar.
Para Paz, a demora na liberação
das presas pode prejudicar mães e crianças. “Se você faz uma lei para proteger
a primeira infância, você está reconhecendo que o tempo passa. E um dia a mais
ou a menos de cárcere na vida de uma criança, de uma gestante, de uma lactante
traz máculas e deixa marcas que não sabemos como isso vai repercutir lá na
frente”, diz.
Presa com bebê na Penitenciária Feminina do DF
(Colmeia) - Luiz Silveira/Agência CNJ/ Direitos Reservados
A defensora pública do
Distrito Federal Karoline Leal também considera que há uma
resistência dos juízes para analisar a possibilidade de prisão
domiciliar. “Os juízes estão muito reticentes em promover análises ou
reanálises de prisão de ofício, eles ficam aguardando uma ação da defesa como
se essa fosse uma atribuição só da defesa. Na verdade, a decisão do STF foi muito
clara para que o próprio Judiciário fizesse essa reanálise, já que o Supremo
indicou que os direitos das mulheres e das crianças não têm sido observados”,
relata a defensora.
O habeas corpus coletivo
foi apresentado no STF pelo Coletivo de Advogados em Direitos Humanos. A
advogada Eloísa Machado, uma das signatárias do pedido, também acompanha a
execução da medida. Segundo ela, dos 3,3 mil pedidos feitos em favor de
mulheres presas provisórias grávidas ou mães de crianças até 12 anos no estado
de São Paulo, pouco mais de 1,5 mil foram julgados.
“A nossa impressão geral é que os
estados estão demorando um pouco mais do que o imaginado para cumprir essa
decisão. Nós imaginávamos essas dificuldades em razão da ausência de
informações sistematizadas sobre quem são e onde estão essas mulheres”, avalia.
Ao aprovar o habeas
corpus coletivo, o STF indicou três exceções para que a prisão
domiciliar não seja concedida: os casos de crimes praticados mediante violência
ou grave ameaça, crimes contra os filhos ou, ainda, em “situações
excepcionalíssimas”, que deverão ser analisada caso a caso pelos juízes. No
voto, Lewandowski também orienta que, quando a detida for reincidente, o juiz
deverá proceder em atenção às circunstâncias do caso concreto. Se o juiz
entender que a prisão domiciliar se mostra inviável ou inadequada, poderá
substituí-la por medidas alternativas.
A vice-presidente institucional
da Associação de Magistrados Brasileiros (AMB), Renata Gil, diz que um dos
principais problemas é a falta de documentação adequada das presas para que o
juiz analise a situação de cada mulher.
“O que percebemos em muitos
desses habeas corpus é que não havia a sustentação necessária e a
defensoria alegava que o núcleo do lugar em que a presa é originaria não teria
obtido facilmente esses documentos. Mas, infelizmente, meras alegações não são
suficientes para juiz avaliar uma situação prisional”.
Segundo ela, os judiciários dos
estados ainda estão se organizando para a análise dos processos. “Daqui a
pouco, todos os estados terão a sua sistemática adequada de modo que a gente
não tenha mais pedidos pendentes”, diz a juíza, que também é presidente da
Associação de Magistrados do Estado do Rio de Janeiro.
No Distrito Federal,
profissionais da Vara de Execuções Penais estão indo às casas de cada uma das
presas provisórias que se encaixariam na decisão do STF para verificar a
situação atual dos filhos. A pesquisa vai resultar em relatórios individuais
que irão balizar as decisões dos juízes. Segundo o Tribunal de Justiça do
Distrito Federal, a concessão da prisão domiciliar não é automática, e os
juízes terão que analisar os casos um por um.
Pedidos negados
Além da demora na análise dos
pedidos, as entidades apontam que alguns juízes estão negando a prisão
domiciliar, mesmo quando as mulheres atendem aos critérios definidos pelo STF.
A advogada Eloísa Machado diz que, em muitos casos, o pedido tem sido negado de
maneira inapropriada. Segundo ela, há situações que mesmo em crimes de tráfico
de drogas a prisão domiciliar não está sendo concedida.
“Esses juízes estão apenas
atrasando a implementação dessa decisão, porque esses casos serão objetos de
recursos e serão certamente deferidos pelo STF. Na prática, os juízes estão
desprezando os direitos das mulheres, os direitos das crianças, desprezando a
decisão do Supremo e assoberbando o tribunal com mais recursos que seriam
desnecessários”, avalia.
O defensor público-geral diz que
também já ouviu relatos de juízes que têm firmado posições mais ortodoxas sobre
o assunto. "De não olhar a situação com o gabarito que o STF
colocou. Isso pode até ser fruto de um posicionamento contrário dos
juízes", diz Carlos Eduardo Paz.
No Espírito Santo, uma grávida
teve o pedido de prisão domiciliar negado e acabou ganhando o bebê enquanto
estava presa. A Defensoria Pública estadual fez um pedido de habeas corpus coletivo
para 198 mulheres, que foi negado pelo Tribunal de Justiça. Em outros estados,
a maioria dos pedidos também não tem sido atendidos, como na Bahia, Minas
Gerais e Pernambuco, onde todos os pedidos de prisão domiciliar foram negados.
“Na maioria dos estados, os
juízes estão criando um requisito que não estava no habeas corpus do
STF, porque eles estão falando que é necessário avaliar o caso concreto, a
situação de cada mulher e de cada criança, para verificar se de fato a criança
depende da mãe”, diz a coordenadora da Comissão de Execução Penal do Colégio
Nacional de Defensores Públicos-Gerais (Condege), Roberta Ferraz.
A juíza Renata Gil,
vice-presidente da AMB, explica que há casos de presas que não têm contato com
os filhos, que muitas vezes são criados por parentes ou vizinhos. “Isso não é
incomum nessa situação de mulheres que se envolvem com a criminalidade. Temos
casos de presas que estão foragidas há bastante tempo e quando são encarceradas
não mantiveram essa relação de afetividade com essa criança”, diz. Segundo ela,
nem todos os casos apresentam possibilidade de liberação, e a análise deve ser
feita caso a caso. “Se não você está cometendo uma injustiça, de colocar em
liberdade alguém que não faz jus a essa liberdade”, diz Renata.
“Isso não é incomum nessa situação
de mulheres que se envolvem com a criminalidade. Temos casos de presas que
estão foragidas há bastante tempo e quando são encarceradas não mantiveram essa
relação de afetividade com essa criança”, Renata Gil, vice-presidente da AMB
Pedro Hartung, do Instituto
Alana, defende que a decisão do STF não significa soltar as mulheres, mas
possibilitar que elas aguardem o julgamento em prisão domiciliar. “É muito
importante que o sistema de Justiça se conscientize dessa importância. Não se
está soltando mulheres que deveriam estar presas, está se possibilitando que
elas cumpram essa medida provisória em domicílio para que a criança tenha um
cuidado adequado e que a mulher não seja submetida às condições insalubres dos
presídios femininos”, defende.
"Não se está soltando
mulheres que deveriam estar presas, está se possibilitando que elas cumpram
essa medida provisória em domicílio para que a criança tenha um cuidado
adequado", Pedro Hartung, Instituto Alana
Depressão e repetência
Joana* foi beneficiada e cumpre prisão domiciliar
em Brasília - Valter Campanato/Agência Brasil
Os quatro filhos da manicure
Joana* também sofreram com a ausência da mãe nos sete meses em que ela ficou
detida na Penitenciária Feminina do Distrito Federal. Depois de
verem a mãe ser algemada e presa, o mais velho, de 11 anos,
entrou em depressão e uma das meninas, de 10 anos, repetiu
de ano na escola.
“Ele não queria mais brincar,
vivia chorando, trancado no quarto, só mexendo no celular, não queria contato
com as pessoas”, conta a mãe, que foi acusada de tráfico de drogas,
grilagem de terra e organização criminosa. O caso dela ainda não foi a
julgamento.
Beneficiada pelo habeas corpus
coletivo, ela retornou para casa no início de abril. Agora, se preocupa com as
mulheres que ainda estão na penitenciária, aguardando uma decisão favorável
para cumprir prisão domiciliar. Segundo ela, muitas ainda estão na expectativa
de sair para ficar perto dos filhos.
“Nós somos mães, temos que estar
vendo o que acontece no dia a dia dos filhos. Se estamos presentes, a gente já
erra, imagina sem estar presente. Tenho muito medo de eles cometerem o mesmo
erro que eu”, diz a moradora da comunidade do Sol Nascente.
Nesse Dia das Mães, Joana tem um
desejo: fazer um grande almoço ao lado dos filhos e da mãe, que cuidou das
quatro crianças enquanto ela esteve presa.
*Nome
fictício
Edição: Amanda
Cieglinski